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Artigo: O filme Rebecca e a naturalização do feminicídio [contém spoiler]

Por Neide Barros

Dia 21/10 estreou na Netflix “Rebecca – A mulher inesquecível” que é baseado no livro homônimo de Daphne du Maurier (1938). A obra que já tinha sido produzida em várias versões, a mais famosa dela de Alfred Hitchcock (1940), rapidamente ganhou o coração dos espectadores da plataforma e em pouco tempo encabeçou o ranking dos filmes mais visto no Brasil.

A Folha de São Paulo chegou a chamar o filme de 2020 como uma releitura feminista da obra década de quarenta, o que discordo completamente. Rebecca busca ser um filme de suspense psicológico, no bom estilo de mansão tradicional e obscura, que vai se revelando e criando tensão. Narrado em primeira pessoa, conta a história de uma jovem de origem humilde que trabalha como dama de companhia de uma aristocrata e vive em uma condição subalterna até se envolver com um rico viúvo, oriundo de uma família tradicional inglesa. Ao se casar com ele, deixa para trás seu passado de servir e se torna senhora de Winter – até então seu nome não era mencionado. Um perfeito conto de fadas, não é mesmo? Pena que não é tão simples.

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A nova senhora de Winter passa a fazer parte da nobreza e ter que assumir as responsabilidades deste papel. Sem origens sofisticadas a moça é esnobada pela governanta da casa (Sra. Denvers) e passa a viver a sombra de Rebecca, a antiga esposa de seu marido.

Todos amavam Rebecca e destacam como ela era linda, talentosa e sofisticada. E isso vai deixando a jovem senhora de Winter ainda mais insegura naquele ambiente novo, hostil e misterioso. Isso vai se intensificando e fazendo-a duvidar do amor do marido e suscitando diversas crises. As comparações contínuas vão deixando-a cada vez mais infeliz e isso é agravado pelas sabotagens dos criados da mansão, ainda fiéis a antiga dona.

Porém descobre-se o corpo de Rebecca preso a uma embarcação naufragada, e isso revela um lado obscuro de Maxime, o esposo e senhor de Winter.  A protagonista percebe que ele mentiu sobre o passado com sua antiga mulher e ao confrontá-lo acaba ouvindo a confissão de que ele assassinou a antiga esposa.  E justifica que Rebecca tinha muitos amantes e estava grávida de outro.  Conta ainda que ela o provocou e por isso não teve escolha. Para ocultar seu crime fez buracos no veleiro e colocou-o no mar junto com cadáver, para que assim ambos desaparecessem.  A senhora de Winter então ao invés de ficar chocada com a revelação, tem uma atitude contrária. Parece apenas aliviada ao saber que o marido não ama mais a falecida, o que era a sua grande tensão ao longo de todo o filme.

Desta maneira ela opta para ficar ao lado de seu esposo assassino e passa a protege-lo das acusações criminais levantadas após o reaparecimento do corpo de Rebecca. Inclusive chega a roubar provas e faz de tudo para simular a inocência do marido e provar que a morte da outra foi apenas um suicídio e não um assassinato. No final ele é absolvido e o casal vive feliz para sempre, viajando o mundo e desfrutando os prazeres do seu casamento, agora livre de vez da falecida.

Então vamos lá! Durante muito tempo o assassinato de mulheres adúlteras em nome da honra era algo corriqueiro no Brasil. Até o século XIX isso era permitido por lei, e mesmo quando foi tirado da legislação ainda havia um apelo social que justificava o crime e na maioria das vezes absolvia o réu. Isso só passou a ser questionado na década de setenta com o movimento feminista que deu ênfase especialmente ao caso Ângela Diniz, que foi assassinada por Raul “Doca” Street, seu namorado, que não aceitou o fim do relacionamento. Daí vieram diversos apelos e campanhas como “quem ama não mata” e uma série de outros movimentos que se fortaleceram contra os assassinatos de mulheres. Graças a eles, atualmente o Brasil tem um tipo penal específico para estes casos.

Porém o filme naturaliza e banaliza este tipo de crime ignorando a gravidade destes atos. Pense bem, ele é perdoado e vive feliz.  Quando terminou eu pensei: “Tudo bem, Rebecca foi morta, mas quem se importa, afinal ela era uma adúltera. Pobre Maxim, merece ser feliz com a nova senhora de Winter, que é bela, recatada e do lar como toda mulher deve ser”. Ironias a parte, é essa a grande mensagem do filme.

E você poderia me dizer que obra se passa em 1938, em um tempo que “essas coisas” eram normais. Sim, eu entendo. Mas o filme é uma representação feita no tempo presente, e é daqui que olhamos para o passado, e nisso tem um discurso. Se fosse uma crítica eu entenderia. Como por exemplo é o filme a “Vida Invisível” (2019) que representa uma opressão contra mulher em um período semelhante, porém problematiza as questões. Já o filme Rebecca, faz o contrário, romantiza as violências e não questiona os acontecimentos. E piorando a situação ainda torna as mulheres vilãs (Rebecca e Sra. Danvers) enquanto o verdadeiro assassino fica solto e ileso.

No final, o grande resumo é que a senhora Winters, que nem um nome tem e toda identidade está em torno da figura do marido, termina feliz porque se torna o que uma mulher deve ser, a sombra de seu homem e de seu casamento.  Enquanto Rebecca, que tem nome e cuja personalidade é tão forte que ultrapassa a morte – tem desejos, vontade, voz, coragem, encantos – precisa e merece ser assassinada pois desvia de seu papel feminino. Esse discurso talvez cabia em 1938 quando o livro foi escrito e talvez por isso tenha sido sucesso. Porém em 2020 o filme falha como romance, como suspense e especialmente como referência para os papéis que mulheres devem ocupar dentro da sociedade.

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