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Crônica de Thyago Humberto

Um dia para não esquecer

Minha experiência ontem (25 de janeiro), na rua 44, na capital. O objetivo era ir à loja que eu havia  encomendado um microfone.  Lá fora o lugar mais barato que achei, já que estamos em tempos de vacas  magérrimas, melhor economizar. Tive que usar o estacionamento do shopping.
Acho que noutra vida eu era gato — pois acredito que tenho sete vidas.
Explico.
Ao sair da independência e adentrar à 44, naquele semáforo da esquina destas duas ruas, eu quase apanhei dum rapazola, com calça social preta, um tanto desbotada, paletó surrado azul, mas parecia preto devido à sua cor original ter perdido a originalidade, um sapato social sem brilho e sujo com uma impressão que fora lambido algumas centenas de vezes pelo totó que estava lá à beira daquela árvore à frente da igreja. O jovem ainda carregava em suas mãos uma bíblia que, aparentemente, faltava a capa e algumas folhas e, assim sendo,  prejudicaria a leitura da Sagrada Palavra. Nas mãos dele contia também um saco de pipoca, que ele segurava com mais determinação que a bíblia, não deixando cair nenhum grão do saco. Aquele senhor aparentava ter seus 27 anos, mas seus trajes de momento lhe davam mais idade.
O sinal fechou. Ele veio em direção ao veículo e, de supetão, pediu para orar por mim. Imaginei que se eu recusasse ele não gostaria da ideia, por isso concordei timidamente com a cabeça. E ele começou. Falou algumas palavras laconicamente, chegando a atropelar nossa gramática e confundido algumas personagens bíblicas, mas isso seria difícil explicar em poucas linhas. Durante sua oração ele disse sentir que eu estava desempregado (não estou) e que eu iria  arrumar um emprego semana que vem. Disse também que eu iria arrumar uma namorada neste carnaval, já que eu estava tanto procurando (eu não estou procurando namorada). Falou que eu conseguiria este ano dar um salto financeiro em minha vida, pois eu sairia dessa vida amargurada (eu estou muito feliz com o pouco que tenho e não quero mais nada, vivo de forma epicurista, o pouco já é necessário). O jovem religioso não citou em nenhum momento o nome de, atenção!, Deus, achei aquilo muito estranho, orar  e não falar em Deus em nenhum momento. Mas, vê bem!, ao final da “oração” ele insistiu que eu comprasse uma revistinha que estava numa caixa, do lado de um carrinho, que, segundo ele, seria minha salvação para meus problemas. Eu lhe  disse que não  poderia comprar a revista. Ele me olhou com cara de poucos amigos e berrou um “Amigo,  estou trabalhando e você pensa o quê?!”. Respondi-lhe que não pensava nada, apenas que não queria comprar sua revista. Ele puxou bruscamente a revista de minhas mãos e disse que eu não merecia sua oração. O sinal abril.
Quando entrei na 44, do meu lado um ônibus do transporte coletivo, com um motorista um tanto adiposo, óculos proporcional ao seu tamanho e com uma expressão de que estava trabalhando no seu limite psicológico, o ônibus vinha a cada metro andado me espremendo para o canto direito, quase que tive que subir à calçada para não bater naquele coletivo. Não sei se ele fez aquilo propositalmente ou se ele não enxergava mesmo à tarde. Mais à frente um sujeito de quase um metro e oitenta quase saltou em cima do carro porque estava correndo do ‘rapa’. Em cima do capô ficou a caixa dele de água mineral que ao encontrar a pintura do carro deixou uma marca. Outro susto. Depois de estacionar, fui tomar um sorvete de açaí na feira. Não era meu dia de sorte. Uma confusão entre dois vendedores fez um puxar uma faca da cintura e ir de encontro ao outro, eu estava entre os dois, sem saber o que fazer resolvi pedir “paciência e calma” para eles. Eles não me deram ouvido e continuavam a trocar frases inenarráveis. Contei, no mínimo, umas sete facadas que poderiam ter encontrado meu corpo naquele contexto desagradável. A turma do deixa-pra-lá conseguiu  acalmar os homens. Após o sorvete a vontade de ir embora era grande, mas as pernas não respondiam à intenção do cérebro, isso devido àquela cena que eu tinha passado. Aos poucos fui conseguindo voltar ao normal e já estava chegando ao estacionamento para ir embora. Mas como era final de feira, e quem conhece aquele lugar em final de feira saberá do que estou a falar, quando estava próximo do veículo, um homem de bigode e calvo, de camiseta cinza e bermuda branca, com cara de muito bravo, desceu de sua kombi e gritava com o motorista da frente para ele andar rápido e sair da frente, o da frente ignorou-o e continuou embarcando algumas coisas em seu carro. Não sei se o homem da kombi ficou mais chateado pela demora ou por ter sido ignorado por aquele. Muita vez ser ignorado é como receber um soco forte no estômago. O homem da kombi fez uma pausa de uns oito segundos e tirou algo do porta-luva de seu carro. Era uma arma. As pessoas que estavam do lado desta cena (eu estava também) correram, outras apenas pararam, não sei se por curiosidade para ver o resultado daquele embate, ou se por não encontrar forças nas pernas para correr. Eu como estava me recuperando da ocasião da briga de faca, ali mesmo fiquei estagnado a observar o desfecho de mais uma guerra particular entre dois seres antissociais. A mulher com o homem da kombi o abraçou e insistiu para que ele parasse com aquilo, o motorista da frente lentamente foi embora e aquela história não resultou em tragédia — inda bem. Dali cinco minutos consegui chegar ao carro e me dirigir à cidade de Senador Canedo, quando cheguei às mãozinhas senti um alívio, felicidade, uma mistura de amor e de tranquilidade por estar ali, por estar vivo. Fiquei por, acho, uns dez minutos na rotatória da entrada de nossa cidade e fiquei a observar o cristo de nosso município e ao retrovisor olhava para a cidade de Goiânia, lembrando daquele dia de susto e experiência oriundas da complexidade humana que nos atormenta e nos deixa inquietos.

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