Crise orgânica, autoritarismos e o “Future-se”
Por Luciana Aliaga
Profa. Depto. Ciências Sociais-UFPB
Secretária do Conselho Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGS-Br).
É possível perceber uma relação de coexistência histórica entre crises orgânicas resolvidas pelo alto (sem a participação popular) e reformas de caráter autoritário no sistema de ensino, que afetam a educação em todos os seus níveis. Esta coexistência histórica, contudo, não é mera coincidência. Em contextos de crises estruturais e prolongadas, caracterizadas pela instabilidade econômica e institucional, frequentemente acompanhadas pelo reavivamento de crenças reacionárias, as políticas de Estado para educação passam a atuar de forma mais direta e imediata sobre as relações de forças político-ideológicas para produção de conformismo social. As reformas do ensino nessas conjunturas constituem, assim, parte da solução pelo alto para crises orgânicas. Antonio Gramsci, analisando o cenário do primeiro pós-guerra e a posterior ascensão do fascismo na Itália, definiu a crise orgânica — em um contexto de profunda crise econômica — como a perda da capacidade de direção do Estado, de modo que o elemento de consenso se torna apenas um aspecto da coerção (Cf. Cadernos do Cárcere, Caderno 13, §23). A crise orgânica é, portanto, uma crise de hegemonia que se aprofunda na medida em que as massas saem da passividade, ainda que de modo espontâneo e desorganizado, sem direções unificadas capazes de levar a cabo uma transformação radical do conjunto da sociedade. Nestas situações, “ocorre quase sempre que um movimento ‘espontâneo’ das classes subalternas seja acompanhado por um movimento reacionário da ala direita da classe dominante” (Idem, Caderno 3, §48). Destarte, diante de uma crise econômica prolongada, da insatisfação das classes populares sem uma direção consciente que sintetize e canalize as reivindicações econômico-corporativas em pautas políticas capazes de criar um movimento popular organizado e coeso, abre-se a possibilidade de golpes de Estado, oportunidades para que grupos reacionários consigam aprofundar sua influência na política. A solução para a crise, portanto, quando não se equaciona em sentido progressista, popular, pode vir a ser resolvida regressivamente, pelo alto, isto é, pode ocorrer por meio de um explícito golpe de Estado ou por meio de um líder carismático, sem ruptura formal das instituições liberais, mas com caráter autoritário. No caso da Itália, o fascismo foi, na leitura gramsciana, uma solução pelo alto para a resolução da crise de hegemonia que se arrastava desde pelo menos o final da Primeira Guerra.
Em cenários de crises orgânicas resolvidas pelo alto é possível, portanto, observar um reavivamento de crenças reacionárias e a irrupção do irracionalismo e da violência na política, ou, pode-se dizer o uso da violência como forma de combate político. Nestas situações a produção de conhecimento, os conteúdos, os métodos, os objetivos e a gestão do ensino, do nível fundamental à universidade, tornam-se instrumentos ainda mais essenciais na batalha cultural. Podemos citar aqui pelo menos dois momentos específicos em que se pode observar o vínculo entre crise orgânica resolvida pelo alto e reformas autoritárias do ensino: a Reforma Gentile (1922–1923), na Itália no início do regime fascista e a Reforma Universitária no Brasil (1967–1969), durante a ditadura civil-militar. Resguardadas as especificidades, pelo menos duas conclusões podem ser tiradas destas duas experiências históricas: 1. O controle direto do sistema educacional foi peça chave para a produção de conformismo social e para a inibição do pensamento crítico em seu nascedouro especialmente em momentos de crise orgânica; 2. Os regimes autoritários na Itália e no Brasil no passado incluíam — ainda que de modo subordinado e instrumental — a educação no interior de um projeto de desenvolvimento nacional. Há, portanto, uma diferença fundamental entre as ditaduras abertas do passado e os autoritarismos vividos no Brasil no contexto atual no que se refere aos objetivos das reformas no sistema de ensino: a educação — em especial a educação popular — não se insere mais em nenhuma forma de projeto nacional, simplesmente porque qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional que tenha existido no passado foi completamente subsumida às necessidades da reprodução do capital financeiro em escala mundial.
Neste cenário a educação em todos os seus níveis se descola totalmente das funções ligadas ao desenvolvimento nacional que existiu no passado (mesmo com todas as limitações e também vinculadas ao capital). O mercado, que submete a educação, agora, contudo, está diretamente ligado ao capital financeiro. Em decorrência disto, atualmente o setor privado de educação — especialmente de educação superior — é controlado por corporações e fundos de investimento com grande participação de capital estrangeiro. A universidade pública representa hoje, portanto, um entrave para o lucro destes gestores de capital na medida em que constitui uma barreira para o crescimento deste mercado. Por este motivo busca-se, por meio dos grandes aparelhos de opinião, desacreditar a universidade pública como ineficiente, impondo, assim, uma racionalidade de mercado, distorcendo o caráter público da produção de conhecimento não imediatamente interessado, isto é, não submetido ao mercado. O processo privatização da educação que se desenvolve desde o período da ditadura civil-militar, agravado e aprofundado pela financeirização nos governos republicanos subsequentes, ganha maior fôlego com o novo governo que assumiu em janeiro de 2019, que retoma, no discurso e na prática, o autoritarismo como norma de ação. Como no passado ditatorial, além de uma pauta privatizadora, a nova gestão do Estado brasileiro também sustenta um discurso baseado em franco ataque às ciências humanas e à universidade pública de modo geral. Ambos, privatização e financeirização se concretizam no âmbito da atual reforma da educação superior por meio do programa Future-se, proposto pelo Ministério da Educação em julho de 2019.
Um breve confronto entre a Constituição Federal de 1988 e as diretrizes do Ministério da Educação, concretizadas no programa Future-se, nos indica pelo menos duas importantes e profundas diferenças na concepção de universidade: 1. A compreensão sobre o conceito de autonomia universitária e; 2. A indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. No site do MEC é possível ler a seguinte notícia em letras garrafais: “MEC lança programa para aumentar a autonomia financeira de universidade e institutos”[i]. A diferença entre “autonomia de gestão financeira” (CF) e “autonomia financeira” (MEC) pode passar desapercebida, contudo, a disparidade entre os dois termos é gritante. Autonomia de gestão financeira vincula ao Estado a responsabilidade de prover fundos públicos para o funcionamento das Universidades, enquanto cabe a estas “gerir” estes fundos. Por outro lado, ao propor “autonomia financeira”, o MEC desresponsabiliza o Estado em relação ao financiamento das universidades, que agora terão que submeter ao mercado projetos de pesquisa capazes de captar financiamento. Os recursos angariados com as pesquisas “deverão ser vertidos em Fundo financeiro”, isto é, as universidades — geridas por Organizações Sociais (pessoas jurídicas de direito privado) — se tornarão investidoras no mercado financeiro. A submissão de projetos de pesquisa ao mercado para autofinanciamento das universidades toca no segundo problema indicado acima, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Em todas as versões da minuta do PL (até o momento o MEC divulgou quatro versões) a pesquisa está imediatamente vinculada à inovação, com o pressuposto de que se esta vinculação for efetivada, automaticamente o retorno financeiro estaria garantido, o que é falso. Primeiro porque cada pesquisa tem seu tempo específico de desenvolvimento e os resultados não são imediatos, por exemplo, não é incomum que uma pesquisa que não seja aplicável diretamente ao mercado, depois de muito tempo sirva de base para que outros projetos proponham uma aplicação imediata que possa atrair o interesse comercial. Mas, para além do problema do tempo e do caráter específico da pesquisa, é preciso considerar também que o conhecimento não pode ser entendido apenas como uma mercadoria negociável. Um dos elementos mais importantes, que constitui a base da pesquisa e da inovação, é o vínculo entre pesquisa e ensino. Isto significa que nem toda pesquisa é imediatamente aplicável, ela é também instrumento de formação desde a graduação. O mesmo pode-se dizer sobre a os projetos de extensão, que têm por finalidade a participação da sociedade nos programas desenvolvidos pela universidade, isto faz parte do compromisso social da universidade pública e está profundamente ligado à formação dos estudantes. Este vínculo entre ensino, pesquisa e extensão não é sequer esboçado nas minutas do PL (cuja superficialidade com que tratam problemas complexos é constrangedora). Pelo contrário, a premissa da pesquisa inteiramente voltada para o mercado destrói o vínculo com a formação de base e com o compromisso social da universidade pública. Em suma, o programa “Future-se” expressa a total rendição do Estado brasileiro que se reduz a um papel subalterno na divisão internacional do trabalho, que relega a periferia à estagnação econômica e à barbárie social. Neste cenário, o campo da educação perde qualquer função no desenvolvimento nacional para se transformar quase exclusivamente em um “mercado” para as grandes empresas da área, que atuam fortemente no mercado financeiro.
As reformas do ensino não podem, portanto, ser analisadas de forma apartada do contexto social em que estão inseridas. A atual modificação no marco legal da educação que está sendo proposta é parte da solução autoritária para a crise de hegemonia, que exige a produção da passividade popular e o alijamento das classes subalternas da política. As soluções pelo alto, que a rigor são fundadas na força — seja pela fraude, seja pela violência aberta — são sempre provisórias e instáveis, isto é, requerem a recorrente coerção social já que elas geram mais crises porque não melhoram efetivamente as condições de vida da população e, portanto, não cessam as causas das insatisfações populares. Disto se deduz que o enfrentamento de uma política autoritária não pode tomá-la isoladamente, mas exige o enfrentamento das relações sociais de forças e dos grupos que a sustentam. A democratização do Estado exige, portanto, uma nova relação de forças na qual os grupos progressistas, democráticos e socialistas estejam suficientemente organizados e unificados para atuar no equilíbrio instável da política.